Estavam os dois com a barriga encostada no balcão de mármore, antigo e encardido de tantas histórias vividas, bebericando uma pinguinha antes de ir pra casa dormir. Já passava das onze da noite e os olhos estavam pesados. Meio embaçados.
– Cê sabe que bicho que deu hoje na paratodos?
– Na petê eu não sei, não, só vi o resultado da peteene.
– Que bicho que deu?
– Só deu bicho que gosta de dar: viado na cabeça e borboleta em segundo.
– Uma dupla de respeito.
– E repetiram – deu viado no terceiro e borboleta no quarto.
– Cê tá brincando?
– Vá conferir.
– Como é que pode?
– Sei lá. E pior ainda foi a seqüência que eles vieram: viado em primeiro com 96 e borboleta em segundo com 15. Depois, viado em terceiro com 95 e borboleta em quarto com 14. Quem aposta numa seqüência ou numa repetição dessas?
– Acho que nem o bicheiro.
– Aliás, eu nunca jogo. Meu dinheiro é ganho suado pra ficar sustentando bicheiro.
– Nunca jogou?
– Não vou dizer que não. Já apostei algumas vezes. Na loteria, no bicho, não.
– E qual é a diferença?
– Sei lá. Na loteria tem uma parte do dinheiro que vai ajudar projetos sociais do governo. No bicho é só bicheiro que leva vantagem.
– Mas, tem bicheiro que ajuda escola de samba, creche, time de futebol…
– Isso é pura enganação. É lavagem de dinheiro. Do montão de dinheiro que eles ganham todos os dias. De pouquinho em pouquinho, enchem o papo.
– Mas, essa história de projetos sociais do governo também é pura mentira. O dinheiro vai é pro bolso de algum deputado atravessador. E ninguém fica sabendo de nada.
– É, também acho. Mais uma razão pra eu não gostar de apostar. Só se tivesse certeza de que ia ganhar. Mas, quem garante?
– Eu acho que no bicho você tem mais chances.
– No bicho, o único que tem todas as chances é o bicheiro: você pagou a aposta, já era. Dê o bicho que der, o dele já está garantido. E saiu do seu bolso direto pro dele. Sem escalas.
– Mas, quando alguém ganha, eles pagam direitinho, em dinheiro, tendo como comprovante da sua aposta só um papelzinho escrito à mão e sem valor legal nenhum, nem de nota fiscal.
– E quem garante que eles não manipulam os resultados?
– Como assim?
– Essa seqüência de ontem, por exemplo, viado-borboleta-viado-borboleta. Cê acha isso normal?
– Ah!. Sei lá.
– Quem faz esse sorteio dos números?
– Não sei.
– ‘Tá vendo?… Ninguém sabe! Todo mundo só fica sabendo os resultados que eles divulgam todos os dias, também em papeizinhos que não valem nada. E todo mundo que jogou acredita neles. Quem garante que esses resultados não foram combinados entre os bicheiros por serem os números menos jogados. Pra diminuir a chance de alguns acertarem?
– Agora acho que você já está exagerando! Resultado combinado entre eles? Cê acha que bicheiro é amigo de bicheiro?
– O que eu acho é que todo mundo tem que ser amigo dos que pertencem ao seu círculo social, ao meio que frequentam e onde atuam. Banqueiro é amigo de banqueiro e não de bancário.
– Isso é verdade!
– E político é amigo de político, polícia é amigo de polícia e bandido é amigo de bandido. É assim que funciona. É o que eles chamam de corporativismo. Todo mundo que faz a mesma coisa tem que se unir para fortalecer a classe. Tanto isso é verdade que o tal mensalão é coisa só pra deputado. Sabe o que é mensalão? É o “calaboca” que todos eles recebem por mês só pra apoiar os projetos do governo, sejam esses deputados de que partido forem.
– Mas, nós começamos conversando do jogo do bicho e acabamos chegando na política. Não gosto de falar desse assunto. Não entendo.
– De política não precisa entender pra falar. É só ver o que está acontecendo e comentar. Só dá semvergonhice.
– Acho que isso é em todo lugar. Até nas igrejas, tem.
– O quê?
– Semvergonhice.
– Porque que você está falando isso?
– Porque estou com um problema sério lá em casa por causa de uma igreja aí, dessas evangélicas.
– Mas, o que é que está acontecendo?
– Minha mulher se “converteu”!
– E isso não é bom?
– Cê acha que é bom ter uma mulher em casa que não quer mais dar pra você só porque o pastor diz que é pecado e que só pode trepar pra fazer filho!
– Quéisso?
– Quéisso? Quéisso? É isso aí mesmo que eu falei. Minha mulher não quer mais saber de nada na cama depois que passou a frequentar essa tal igreja aí. Diz que está na Bíblia.
– E como é que você está se virando?
– Na punheta, né?
– Quéisso?
– É isso mesmo, de novo. Vou ficar segurando?
– Que situação!
– E tem mais ainda.
– Tem mais ainda?
– Tem. Os caras estão tomando todo o dinheiro dela. Não pode aparece por lá com algum na bolsa, que os caras tomam.
– De que jeito? Na mão grande?
– Não, trouxa, na manha, na lábia. “Irmãzinha, nós estamos precisando de uma doação para o caixa da igreja, temos tantas despesas, socorremos tanta gente, aliviamos tanto sofrimento, mas para fazer tudo isso precisamos da sua ajuda”. E a tonta abre a carteira e deixa tudo o que tem. Não dá mais pra deixar dinheiro na mão dela.
– E as compras?
– Faço eu. Vou ao supermercado, compro o que está precisando e pronto. Levo pra casa e está acabado. Não tem mais dinheiro na mãozinha dela, não. Senão vai tudo pra igreja. São uns descarados, chamam de “contribuição”, “dízimo”…
– Já ouvi falar.
– E eu estou sentindo na pele o que é que essa palavrinha quer dizer: dízimo – “quanto é que o irmãozinho tem aí no bolso? Nós precisamos da metade!…”
– Rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs
– É mermão, você ri? Mas, quem tá esquentando a cabeça sou eu, véio. Os caras colocam minha mulher contra mim e ainda querem meu dinheiro! São tantos anos de casados já, mais de vinte eu acho, e agora me acontece isso. As crianças é que não podem sofrer. Preciso engolir em seco e administrar a coisa toda. E ainda tenho que trabalhar, produzir durante o dia, senão o dindim não entra. E as contas não param de chegar, cada vez maiores. E prazer? Só no cinco contra um. Só ficando doido pra aguentar. Dá mais uma aí, ô Papai Noel. Vai mais uma?
– Não, pra mim chega. Vou pra casa dormir.
– Toma mais uma!
– Também não precisava insistir tanto, né? Bota mais uma aí, Noel.
– Pois então, a situação, como dizia minha finada mãe, “não está pra peixe… pequeno”.
– Pros tubarão continua tudo igual.
– Pros tubarão e pros pastores das igrejas, os enganadores de trouxas.
– O jeito é arriscar uma fezinha no bicho.
– Ué? Cê não falou que não jogava?
– Isso foi antes de tomar essas quatro, né?
– Já tomamos quatro?
– Cada um.
– Nossa, preciso ir embora! Daqui a pouco não tem mais ônibus pra minha casa.
– E tem ônibus que vai pra casa de alguém?
– Engraçadinho. “Ônibus pra minha casa” é jeito de dizer, né, seu xarope.
– Rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs
– Vamos nessa?
– Vamb’ora.
– Então, mata aí.
Gole. Pagaram, desencostaram as barrigas do balcão e saíram pra noite, cada um pisando seu próprio caminho.
– Boa noite, Noel.
– Até amanhã, Noel.
O dono do boteco desabafou por trás da sua longa barba branca:
– Ora, vão se fuder…, isso é vida? Já passa da meia-noite e eu aqui atrás deste balcão imundo aguentando histórias de bêbados só por causa de oito doses de cachaça! Ainda se fosse de uísque!